Castiçal de vidro do lado esquerdo, vela fina e caixa de fósforos do lado direito

Era sempre a mesma coisa
Qualquer sinal de ventania
Qualquer sinal de tempestade
Ele corria para acender
Uma vela benta

Tinha muito medo dos ventos
Talvez que eles levassem
O telhado da oficina
As telhas da casa
As tampas das caixas d’água
Essas últimas com razão
Voaram já duas vezes

Pegou a tradição de minha avó materna
Que acendia uma vela
Nas tempestades mais fortes
Foi um passo além
Bastava um trovão
E lá estava ele
Com vela e fósforos na mão

As velas bentas
Acabaram-se quase todas
Agora não serão tão usadas
Talvez não mais

Do lado direito, garrafa de pinga Du Quito; do lado esquerdo, um copo pequeno de licor

Pinga é a única bebida
Que papai bebe
Sempre em casa, festa ou restaurante
Não em bar ou boteco

Uma antes do almoço
Uma antes do jantar
Sempre pede uma
Para abrir o apetite

De preferência de Guanhães
A melhor na opinião dele
Mas pode ser de outros lugares
Desde que seja boa

Mamãe não gosta
Percebe logo quando ele bebe
A fala arrastada
Tem medo que ele caia

O copo lagoinha
Virou um de licor pequeno
É o que os médicos liberaram
Sem que mamãe veja

Xícara branca sobre fundo azul escuro

O café de manhã
Recém passado
Adoçado
Acompanhando o pedaço de queijo
Biscoitos, bolo ou pão

O café da tarde
Ainda quente
Depois do almoço
E mais alguns
Quando tinha vontade

O café da noite
Após o jantar
Esquentado
30 segundos no micro-ondas

A receita do café
Agora leva uma xícara a menos
E ainda assim
Sobra muito mais
Na garrafa térmica

Pote de balas de vidro transparente com balas de vários sabores

Algo que puxei do meu pai
Foi o gosto por doces
O doce de leite
O pudim de leite
A sobremesa
Após as refeições
Sinto mais falta de doces
Do que ele
Mas esse traço veio dele

Nos últimos tempos
Papai começou a gostar ainda mais de balas
Chupava algumas por dia
Manhã, tarde, noite
O horário não importava
Ainda bem que não tinha diabetes

O pote de balas
Continua em cima da mesa
O pacote de balas
Continua no móvel da sala
Chita, Erlan
A marca não importa
O que importa é ter balas

Rádio de pilha prateado sob fundo azul escuro

Papai teve vários radinhos de pilha
Dois que me lembro são um verde claro
Um pouco maior, com uma alça prateada
E um azul claro, menor
Acho que tinha uma capa de couro
Esse aqui é o mais novo
Não está funcionando direito
O dial de volume está agarrando
Arranha ao aumentar o volume
A sintonia também não está boa
Cheia de estática

O rádio colado no ouvido
Era uma das suas marcas
Sintonizado na rádio Itatiaia
Ouvindo notícias e especialmente futebol
Assistindo os jogos
Especialmente os do Galo
Vendo os lances na televisão
Após ouvir a jogada no rádio

O Alzheimer roubou o gosto pelo rádio
Não ouvia mais
A empolgação com futebol diminuiu
Talvez por causa disso
Mas ainda assistia os jogos
Na terça passada
Em um dos momentos de consciência
Ele viu os gols do Galo
3 a 2 contra o Peñarol
Ficou feliz com o time
Cuja camisa ele agora carrega no peito

Caderno com datas escritas a mão com lápis

Quarta feira 20 de Março de 2024
Após o diagnóstico de Alzheimer
A fonoaudióloga prescreveu
Exercícios para atenuar
O declínio cognitivo

Quinta feira 21 de Março de 2024
Eram vários no início
Palavras cruzadas
Analogias
Completar sequência
Resumir notícias
Escrever o nome e a data 3x

Sexta feira 22 de Março de 2024
Na pandemia
Meu pai deixou de ir na fonoaudióloga
Minha mãe insistiu para que escrevesse
Nome e data
Todos os dias

Sábado 23 de Março de 2024 (3x)
Muitas vezes ele pegava o caderno
Ficava olhando por um tempo
Depois fechava
“Vou fazer amanhã”, dizia
No dia seguinte fazia a mesma coisa

Domingo 24 de Março de 2024
Às vezes ele escrevia a data só uma vez
Ao invés de três
Especialmente quando acumulava
E fazia uma semana de uma vez
Brigava com o calendário
“Mas hoje não é sexta, aqui está segunda”
“O senhor não fez desde terça”

Segunda feira 25 de Março de 2024 (3x)
A última data
E ele fez direitinho

Caixa de aparelho de barbear de lâmina com espelho no fundo do lado esquerdo, aparelho de barbear de lâmina do lado direito, lâmina de barbear abaixo do aparelho

O aparelho de barbear
Fica na última gaveta
Do armário do banheiro
Houve um antes desse
Esse é o atual
Meu pai até tem um elétrico
Que quase nunca usa
Ele prefere esse

O ritual é sempre o mesmo
O espelho no tanque
A espuma feita com sabonete
Paciência e calma
Vários minutos
E uma barba perfeita

Atualmente meu pai não tem
Tanta habilidade mais
Então fazemos a barba dele
Eu ou meu irmão
Com um barbeador elétrico novo
Quando cortamos o cabelo dele
Ou quando a barba está grande

O bigode não
O bigode a gente não encosta
O bigode ele faz sozinho
Com esse aparelho
Do jeito que ele gosta
No tempo dele

Relógio dourado em fundo azul escuro

Dentre os vários relógios
Disponíveis em várias das lojas
Do Paraguai na década de 80
Esse foi o escolhido
Por meu pai
Para acompanhá-lo
Em vários momentos da vida

Esse relógio dourado presenciou
Formatura de filhos
Casamento de filhos
Nascimento de netos
Enterros de irmãos, parentes, amigos
Festas
Bodas de ouro
Bodas de diamantes

Esse relógio dourado compareceu a
Jogos de futebol
Balés
Consultas médicas
Missas
Almoços de família
Visitas
Velórios

Esse relógio dourado era usado
Por meu pai
Todos os dias
Tirava para tomar banho
Dormir
Às vezes ficava próximo do travesseiro
Ou em cima da mesa
Tinha que usá-lo
E estava sempre exato

Esse relógio dourado espera
Agora
Outro pulso

Cinto marrom de couro, carteira de identidade e uma nota de 5 reais, colocadas em cima de um fundo azul escuro

Nas calças
Dependuradas no gancho do espelho
Estavam o cinto, a carteira de identidade e o dinheiro
Ele não fica sem essas três coisas
Mesmo dentro de casa

O cinto
Por ser bem magro, é necessário
Para manter as calças no lugar
E sempre combinando
Nunca um marrom com calça preta

A carteira de identidade
Caso precise se identificar
Mesmo ali na frente de casa
Mesmo com toda a idade dele

O dinheiro
Caso tenha que pagar por algo
Cinco, dez, cinquenta
Qualquer valor
Pelo menos uma nota

Itens pessoais
Itens essenciais
Para a pessoa que ele é

Os chinelos.
Os remédios.
As fraldas.
Os lenços umedecidos.
O pijama.
O termômetro.
O xampu.
O sabonete líquido.
O oxímetro.
O aparelho de barbear.
As meias.

Uma parte de uma vida, representada em uma pequena bolsa.

Como dói, como dói.