Incoerências, comoções seletivas e Marielle Franco

Tirei uns minutos pra denunciar e bloquear usuários do Twitter que estavam espalhando o boato da Marielle Franco ser casada com o Marcinho VP. Antes de denunciar, olhei a timeline deles e notei um padrão: Todos continham um tuíte com essa imagem

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Imagem de duas mulheres negras, colhidas dos posts no Twitter

e um texto nessa linha.

“Incoerência. Mulheres negras, pobres, trabalhadoras e brutalmente assassinadas no Rio. Se você nunca ouviu falar delas, é porque não eram militantes de esquerda. Eram policiais.”

Alguns exemplos de tuítes com texto similar a esse:

 

Não citavam nomes, em alguns não citavam que eram do Rio nem que eram policiais. Pra quem queria denunciar a “incoerência”, pelo visto não precisa citar a identidade: só a menção de que eram negras trabalhadoras já seria suficiente para mostrar a seletividade da comoção gerada pela morte da Marielle Franco. Resolvi procurar quem eram essas mulheres. Cortei as imagens de cada uma e fiz busca. Essas são as histórias dessas duas mulheres.

Soldada PM Fabiana Aparecida de Souza

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Soldada PM Fabiana Aparecida de Souza

Fabiana tinha 30 anos. Morreu na noite de 23/07/2012 com um tiro no peito, durante ataque de criminosos à sede da UPP de Nova Brasília, no conjunto de favelas do Alemão, na Zona Norte do Rio. 3 suspeitos foram presos, conforme registrado nessa matéria do Jornal do Brasil.
Nascida em Rio das Flores, Fabiana tinha morado em Valença e antes de ir para o Rio de Janeiro, onde morava com a irmã, Luciana.  Estava na corporação há 4 meses, era uma moça alegre e vivia um momento feliz da vida, disse a irmã em reportagem do jornal O Globo.
Fabiana foi enterrada no dia 25/07/2012 no cemitério do Riachuelo, no centro de Valença, RJ, onde havia morado. Segundo matéria do site R7, centenas de pessoas compareceram ao sepultamento e as ruas no entorno do cemitério ficaram lotadas.

Soldada PM Alda Rafael Castilho

 

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Soldada PM Alda Rafael Castilho,

Alda tinha 27 anos. Morreu no dia 02/02/2014, em troca de tiros na UPP na comunidade Parque Proletário, na Vila Cruzeiro. Os relatos são divergentes: segundo matéria do G1, ela foi atingida com um tiro na cabeça; já por matéria do site R7, ela morreu por causa de um tiro na barriga.
Alda era o orgulho da família, a primeira a entrar na faculdade; cursava Psicologia e seu sonho era ser psicóloga da PM. A mãe, Maria Rosalina Rafael Castilho, ficou devastada com a morte da filha, e se queixou de não ter sido procurada por nenhuma ONG ligada aos direitos humanos, conforme citado em matéria d’O Globo. A mesma matéria contém comentário do José Junior, coordenador da ONG AfroReggae. Ele lamentou a morte de Alda em post na Internet, e também reclamou da falta de indignação: “Não vi as pessoas das ONGs falarem da morte da policial”.
(Observação: o José Junior foi o mesmo que insinuou que o Eduardo de Jesus Ferreira, 10 anos, assassinado por policiais no Complexo de favelas do Alemão em 2015, estava envolvido com o tráfico.)
Alda foi enterrada no dia 03/03/2014 no Cemitério Jardim da Saudade, em Sulacap, segundo informado no site da Band.
Essas são as histórias da Fabiana e da Alda, soldadas da PM mortas durante o exercício de suas profissão. Essas são as mulheres cujos tuítes supostamente indignados nem se deram ao trabalho de informar os nomes.
Mas alguém sabia quem elas eram: Marielle Franco.

Trabalho da Marielle Franco

Fabiana e Alda foram citadas na dissertação de mestrado da Marielle: “UPP – a redução da favela a três letras : uma análise da política de segurança pública do estado do Rio de Janeiro”, juntamente com outros 11 policiais mortos até Agosto de 2014. A dissertação da Marielle está no site da UFF e o trecho está na página 99:

Dentre esses mortos estão: Paulo Ricardo Fontes Carreira, 30 anos; Diego Bruno Barbosa Henriques, 25 anos; Anderson Dias Brazuna, 34 anos; Charles Thomaz Barros, 25 anos; Wagner Vieira da Cruz, 33 anos; Leonardo do Nascimento Mendes, 27 anos; Melquisedeque Bastos, 29 anos; Fabiana Aparecida de Souza, 30 anos; Alda Rafael Castilho, 27 anos; Rodrigo de Souza Paes Leme, 33 anos; Leidson Acácio Alves Silva, 27 anos; Fábio Gomes, 30 anos; Wesley dos Santos Lucas, 30 anos. Os seis últimos somente neste ano, até agosto de 2014, nas favelas pacificadas (vide gráfico 1).

A mesma Marielle que sabia os nomes da Fabiana e da Alda é a mesma que também lutava pelos policiais, prestando assistência aos familiares quando estava no gabinete do Marcelo Freixo. Em matéria d’O Dia, Rose Vieira, mãe de Eduardo, policial morto, relata que “[q]uando meu filho foi morto me falaram para procurar os Direitos Humanos. Pensei: ‘Direitos Humanos para policiais?’Foi assim que conheci a Marielle, que passou a cuidar do caso pessoalmente”

Outra matéria do G1 destacando o trabalho de Marielle Franco no apoio aos policiais, cita que:

Quem trabalha na Comissão de Direitos Humanos lamenta que não haja  estrutura para ajudar todas as vítimas. No ano passado, foram mais de  100 policiais mortos — sem contar o auxílio prestado às vítimas civis.  No grupo, não há nem 15 funcionários.

“É uma ajuda que deveria partir do Executivo, da secretaria por exemplo. A Comissão de Direitos Humanos da Alerj ajuda como pode. Às vezes, precisamos pegar o contato com familiares de vítima com a imprensa porque não sabem nem que existimos. A polícia, os bombeiros, as instituições que deveriam ajudar são todas ligadas ao Executivo e não ao Legislativo. Fazemos o que podemos”, diz um dos membros do grupo.

Será que quem reclama dos direitos humanos sabe dessa realidade? Será que a Maria Rosalina Castilho, mãe da Alda, foi orientada corretamente para buscar esse suporte? Não seria o momento de cobrar mais infraestrutura?

Em sua dissertação, Marielle fala o seguinte:

As marcas dos homicídios não estão presentes apenas nas pesquisas, nos números, nos indicadores. Elas estão presentes sobretudo no peito de cada mãe de morador de favela ou mãe de policial que tenha perdido a vida. Nenhuma desculpa pública, seja governamental ou não, oficial ou não, é capaz de acalentar as mães que perderam seus filhos.[…].  Não há como hierarquizar a dor, ou acreditar que apenas será doído para as mães de jovens favelados. O Estado bélico e militarizado é responsável pela dor que paira também nas 16 famílias dos policiais mortos desde o início das UPPs.

Marielle morreu lutando por pessoas como a Fabiana e a Alda. Não vamos deixar a luta dela terminar.